Neste domingo em que celebramos
a solenidade da Santíssima Trindade, a liturgia oferece o texto evangélico de
Mateus 28,16-20. Como de costume, concentramos a nossa reflexão exclusivamente a
partir do texto bíblico. Embora curto, apenas cinco versículos, seu conteúdo é
precioso, e comporta uma importância ímpar para a vida da Igreja desde os seus
primórdios. É a síntese e a conclusão de todo o Evangelho segundo Mateus. Ao escrever
as suas últimas linhas, o evangelista e sua comunidade fizeram questão de
resumir a essência de tudo o que já tinha sido apresentado ao longo do
Evangelho. O contexto é estritamente pascal, bem como o conteúdo: a
manifestação do Ressuscitado aos onze, na Galileia.
Mesmo curto, o texto é
complexo; por isso, para compreendê-lo bem é necessária uma certa familiaridade
do leitor com todo o Evangelho segundo Mateus. Na impossibilidade de recordarmos aqui todo o
conteúdo do Evangelho, recordamos, como introdução e contextualização, o relato
do túmulo vazio e ressurreição (cf. Mt 28,1-10), com as respectivas manifestações
de um anjo do Senhor (cf. 28,2) e do próprio Jesus Ressuscitado (cf. 28,9) às
mulheres que foram ao túmulo naquele primeiro dia da semana (cf. 28,1). O anjo
e Jesus Ressuscitado confiaram às mulheres a missão de convencer os discípulos
a retornarem à Galileia para, ali, fazerem também eles a experiência de
encontro com o Ressuscitado.
Diferentemente de Lucas, por exemplo, para Mateus
Jerusalém só oferece hostilidade ao discipulado e à mensagem de Jesus;
permanecendo lá, os discípulos não conseguem encontrar-se com o Ressuscitado. Na
verdade, essa ideia já vinha sendo preparada desde o início do Evangelho com o
episódio da visita dos magos: eles procuraram “o rei dos judeus” em Jerusalém,
em vão; guiados pela estrela, perceberam que ele só podia ser contemplado na
periferia, em Belém (cf. Mt 2,1-12). Como centro do poder religioso e político,
a capital representava o “contra reino”, ou seja, a negação completa do projeto
de Jesus.
Podemos, assim, compreender
porque “os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes
tinha indicado” (v. 16). A referência aos onze, além de recordar que Judas
Iscariotes já não fazia mais parte do grupo, tem um significado muito
importante para a comunidade de Mateus: representa a superação de uma
mentalidade nacionalista e triunfalista. Ora, o número doze fazia alusão ao
antigo Israel, e alimentava a ideologia davídica. Esse projeto faliu, Israel
rejeitou o seu verdadeiro messias, causando sua morte na cruz. Fazendo uma
releitura dos últimos acontecimentos à luz da ressurreição, a comunidade de
Mateus concluiu que, para a missão universal lograr êxito, é necessário
distanciar-se dos antigos esquemas e tradições de Israel. Por isso, mais que
incompletude, o número onze é sinal de nova mentalidade e perspectiva. Não podemos
esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento
exclusivo da teologia de Lucas (cf. At 1,15-26). Na perspectiva de Mateus, para
a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário abandonar os
esquemas do judaísmo.
O retorno à Galileia é muito
significativo. Em Jerusalém a experiência fora completamente negativa; além de
ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia nenhuma
perspectiva para a comunidade do Ressuscitado lá florescer. Recordemos o conluio
dos poderes religioso, militar e político para desacreditar a ressurreição (cf.
28,11-15), com a mentira do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (cf. Mt
28,11-15). Portanto, o retorno à Galileia era necessário para a sobrevivência
da comunidade e, ao mesmo tempo, para o reencontro dos discípulos com as
motivações originárias do seguimento. Além das incompreensões ao longo da
caminhada, inclusive disputa por poder (cf. 20,20), os acontecimentos
envolvendo a paixão e a morte de Jesus deixaram a comunidade profundamente
abalada. Daí a necessidade do retorno ao ideal primeiro, ou seja, retornar à
Galileia, onde tudo começou, para fazer a experiência do monte.
Ao longo de todo o Evangelho,
há muitas referências ao monte, desde o monte das bem-aventuranças (cf. 5 – 7)
até o monte das oliveiras (cf. 24 – 25). O monte é o lugar de encontro com Deus
e com a sua palavra. Foi no monte que Jesus lançou o seu programa de vida, as
bem-aventuranças (5,1-12), e esse convite para os discípulos retornarem à
Galileia, para o monte, é exatamente para voltarem à essência do seu projeto de
vida. É também um modo de indicar a continuidade entre a mensagem de Jesus de
Nazaré e o Ressuscitado. A Galileia como região desprezada entre os judeus é um
alerta aos discípulos quanto aos destinatários primeiros do anúncio: os pobres
e marginalizados.
Na sequência, o texto descreve
a reação dos discípulos: “Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele.
Ainda assim, alguns duvidaram” (v. 17). A princípio, parecem duas posturas
opostas diante da ressurreição, mas o evangelista as vê como complementares.
Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade
de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo que tinha usado para
indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. 2,2):
prostrar-se em adoração (em
grego: proseku,new – proskinêo). Esse verbo tanto indica adoração quanto
sujeição a alguém, como deve ser a postura da comunidade: adorar somente a
Jesus e sujeitar-se somente ao que ele ensinou, assumindo completa autonomia e
emancipação em relação aos preceitos da lei. Com esse gesto, o evangelista diz
que os discípulos aceitam os valores do reino como universais e, por isso,
lutarão para que cheguem a todos lugares da terra.
A dúvida não faz mal à
comunidade, pelo contrário; nem mesmo Jesus vê problemas no duvidar, tanto que
não repreendeu os discípulos por isso. Como o evangelista não diz o motivo da
dúvida, nem mostra Jesus repreendendo-os, podemos dizer que ele está apresentando
uma característica necessária para a comunidade do Ressuscitado. Para a solidez
da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas o
amor. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de amar, e amar
sem limites. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na
vida da comunidade.
Diante da reação dos
discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso de envio (vv.
18-20). É importante perceber que não são palavras de despedida, até porque ele
não vai embora da comunidade; são palavras de envio e comissionamento. Ao dizer
“Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra” (v. 18), Jesus está
decretando a falência dos poderes sediados em Jerusalém (religioso, militar e
político), e estabelecendo uma nova ordem. A verdadeira autoridade, exercida pelo
amor, parte da periferia, enquanto em Jerusalém tem apenas força de morte, uma
vez que lá a autoridade é exercida com base na mentira, no medo, no suborno e
na violência.
Após uma pequena introdução (v.
18), segue-se o envio universalista e inclusivo: “Ide e fazei discípulos
meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito
Santo” (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da sua autoridade e,
mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas de exercício de
autoridade. Ele não envia seus discípulos para impor nem dominar, mas para
fazer novos discípulos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu
projeto de vida e de sociedade. Não envia os discípulos para doutrinarem
ninguém, mas para apresentarem uma proposta de vida. Aqui, registramos a força
do verbo empregado pelo evangelista para “fazer discípulos”: no grego, idioma
original do evangelho, há o verbo “discipular” (maqhteu,w – matheteúô); com ele, o evangelista
consegue distinguir o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos
com facilidade em nossa língua, com as traduções que temos. O novo e universal
discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos
discípulos, os quais não são operadores de tarefas, mas seguidores e testemunhas
de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.
À missão de “discipular” é
intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à comunidade dos
discípulos. Mateus pensa na sua comunidade marcada pela tensão entre os adeptos
e os contrários à prática judaica da circuncisão. Dos novos discípulos, não deve
ser exigido nenhum sinal exterior além do batismo. A fórmula trinitária
expressa, mais que uma formulação teológica, a preocupação do evangelista para
que o batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito
penitencial do movimento fundado por João Batista. A expressão “Em nome de/do”
indica a força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua
própria essência, expressa a totalidade do ser. Portanto, ser batizado em nome
do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência de Deus.
Como última recomendação do
mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais que uma ordem: “ensinando-os
a observar tudo o que vos ordenei!” (v 20a). Tudo o que Ele ordenou ou
ensinou não foi muita coisa, não foi uma doutrina, foi apenas um jeito de viver.
O pronome indefinido “tudo” (em grego: pa,nta– panta),
expressa a totalidade do que Jesus ensinou e a preocupação para que nada de
secundário seja acrescentado e que possa, inclusive, desviar a comunidade do
que foi ensinado por Ele. E o que, de fato, Ele ensinou, como já afirmamos, foi
um jeito de viver, proposto nas bem-aventuranças e em todo o discurso da
montanha (Mt 5 – 7). O que os discípulos têm a ensinar, para que todas as nações
sejam “discipuladas” é a vivência das bem-aventuranças, e isso não é doutrina
nem código, é vida concreta, é um jeito de ser.
A última frase de todo o
evangelho é, na verdade, a síntese: a certeza da presença de Jesus na
comunidade e na história: “Eu estou convosco todos os dias, até o fim do
mundo” (v. 20b). Embora a tradução do texto litúrgico apresente o verbo
estar no futuro, o evangelista o emprega no presente (em grego: eivmi – eimí). O tema da presença é o fio condutor de todo o
Evangelho segundo Mateus: no início, Jesus é apresentado como Emanuel, cujo
significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele mesmo garantiu estar
presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (18,20), e garante,
aqui na conclusão, permanecer para sempre com os discípulos. É essa presença
constante e perene que confere à comunidade a sua razão de existir.
Que possamos, portanto, viver
impregnados da essência de Deus, como discípulos e discípulas de Jesus de
Nazaré que, Ressuscitado, vive e está presente na história, ajudando-nos a
compreender e viver tudo o Ele mesmo ensinou. Quando a comunidade tem certeza
dessa presença, não tem medo de lançar-se à missão para compartilhar os seus
ensinamentos e, ao mesmo tempo, está sempre de portas abertas para acolher a
todos e todas sem distinção.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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