No domingo em que celebramos a
solenidade da ascensão do Senhor, a liturgia oferece, neste ano B, o texto
evangélico de Marcos 16,15-20, para nossa reflexão e meditação. A solenidade da
ascensão marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado penetra no mundo do
Pai, conferindo à sua comunidade de seguidores e seguidoras a continuidade da
sua obra, enviando-a a proclamar o Evangelho, notícia boa e maravilhosa, à toda
a criação. O texto confere a responsabilidade da comunidade cristã para que,
mesmo na convivência eterna do Pai, o Ressuscitado continue presente no mundo
através dos seus seguidores. Embora de grande riqueza teológico-eclesial, o texto
carrega em si alguns problemas de caráter redacional.
É praticamente unanimidade
entre os estudiosos que o evangelho original de Marcos termina em Mc 16,8, e os
versículos seguintes, de 9 a 20, foram acrescentados posteriormente, já após
algumas décadas. Dois motivos principais contribuem para essa teoria; o
primeiro é a mudança de estilo literário entre esses versículos e o restante do
evangelho; o segundo motivo é a ausência desses versículos nos manuscritos mais
antigos desse evangelho, os códigos Vaticano e Sinaítico. Como 16,8 termina
dizendo que naquele primeiro dia semana “as mulheres fugiram do túmulo com
medo”, a comunidade completou o texto, colhendo informações dos outros
evangelhos, dando uma conclusão menos angustiante ao evangelho. De fato, nos
versículos de 9 a 20, podemos encontrar uma espécie de síntese dos relatos de
aparição dos outros três evangelhos: referência aos discípulos de Emaús (cf. v.
12), típico de Lucas; menção à incredulidade (cf. v. 14), típico de João, e o
envio missionário universal (v. 15), característico da conclusão de Mateus. O
acréscimo desses versículos, portanto, serviu para apagar, em partes, a
impressão de incompletude no Evangelho segundo Marcos.
Uma vez contextualizado,
olhemos para o texto que nos é oferecido: “Naquele tempo, Jesus se
manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: Ide pelo mundo inteiro e anunciai
o Evangelho a toda criatura!” (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos
que foi na mesa, durante a refeição, que Jesus se manifestou (cf. v. 14). A
comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula. A presença do
Ressuscitado impulsiona, provoca abertura de perspectiva e compromisso. As
palavras são claramente de um envio universal. A novidade é que não são apenas
os seres humanos os destinatários do Evangelho, mas a criação inteira: toda
criatura. Como boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela
comunidade cristã, comporta uma forma de vida totalmente nova em relação à
todas as experiências até então praticadas, propondo uma relação harmoniosa com
a criação inteira, e não apenas com os seres humanos.
Como obra de Deus, toda a
criação precisa ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do
Evangelho, uma vez que o mal presente no mundo atinge a criação inteira. De
fato, Paulo já tinha se dado conta dessa realidade: “a criação inteira e
sofre como em dores de parto” (Rm 8,22). Somente o amor do Pai revelado em
Jesus, vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras,
pode restaurar a criação. Por isso, é urgente que todas as criaturas sejam
revestidas de amor e conheçam a forma de vida que o Evangelho propõe.
O Evangelho é dom gratuito, não
uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não. O anúncio cristão
só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários. Como toda escolha
tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: “Quem crer e for batizado
será salvo. Quem não crer será condenado” (v. 16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão a uma proposta de vida, é
aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente
repetir fórmulas. A aceitação do Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa
adesão e de comunhão com a comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo,
ou seja, terá sua vida ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não
mais vulnerável aos efeitos da morte.
Não
crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz consequências. O texto diz
que “aquele que não crer será condenado”, mas não diz que é Deus
quem condena porque, sendo essencialmente amor, ele não condena ninguém. É o
próprio ser humano que se auto condena quando não aceita o amor como regra de vida.
É condenado, portanto, quem não consegue dar sentido à sua existência, e isso é
perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é deixar de viver plenamente.
Quem aceita a proposta de amor
contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe de mágica, mas
como forma de viver e compreender as coisas. Por isso, Jesus elenca alguns
sinais: “Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes:
expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem em serpentes
ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as
mãos sobre os doentes, eles ficarão curados” (vv. 17-18). Antes de tudo, é
importante recordar que os sinais elencados não são dons conferidos aos
anunciadores, mas aos que crêem, ou seja, Jesus não está dotando os seus
discípulos de dons extraordinários, mas comprometendo-os: o anúncio deve ser
transformador de vidas. Por expulsar demônios, entende-se a eliminação do mal do
mundo; não se trata de ritos de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem
adere ao Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. O
antídoto ao mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao
universalismo da salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em
torno do Evangelho. O amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada.
Na sequência dos sinais que
devem acompanhar aqueles que crerem no Evangelho, percebemos uma releitura da
descrição profética dos tempos messiânicos em Isaías (cf. Is 11,1-19): um mundo
completamente harmônico, com todas as criaturas convivendo entre si sem nenhuma
causar dano ao outro. O sonho de um mundo novo inspirava a criatividade dos
profetas para descrever a realidade imaginada e desejada. Com imagens tão
interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e
mostrar que, tanto o anúncio quanto a adesão a esse, implicam em compromisso
transformador de vidas e situações.
Com uma imagem típica de
entronização, o autor narra a ascensão propriamente dita: “Depois de falar
com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de
Deus” (v. 19). Sentar-se à direita significa uma posição de honra. Essa
imagem era muito usada nas cortes do antigo Oriente, influenciando bastante a
literatura bíblica. Aqui, significa que Jesus cumpriu fielmente a sua missão de
revelar, com palavras e ações, o rosto amoroso do Pai. Ao invés de suscitar
sentimentos de triunfalismos nos seus seguidores, essa imagem deve gerar
compromisso: tendo retornado ao Pai, cabe agora aos discípulos e discípulas a
missão de irradiar o seu amor no mundo. Inclusive, o autor do texto deixa muito
claro isso, com o versículo conclusivo: “Os discípulos então saíram e
pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio
dos sinais que o acompanhavam” (v. 20a). A resposta da comunidade ao retorno de
Jesus ao Pai não é a contemplação com espera passiva pela sua segunda vinda,
mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os discípulos saem por toda parte. A missão
de Jesus, portanto, não se conclui com a ascensão, mas ganha com ela novos
aspectos e dimensões; ela deve continuar através dos discípulos, e o texto
atesta como as primeiras gerações de cristãos e cristãs levaram a sério esse
mandato.
Quando a comunidade assume a
missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. O anúncio, se
autêntico, deixa marcas, transforma as situações. Os sinais concretos que devem
marcar o anúncio não são condições para despertar a fé, mas consequência: “O
Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v. 20b). Os sinais apenas confirmavam o anúncio. Esses
sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação
das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância.
O Ressuscitado está presente
onde o Evangelho é anunciado, vivido e produz frutos de amor! Os sinais são
consequências da força indescritível do amor; é essa a energia vital de qualquer
comunidade cristã; amor que aumenta à medida em que é experimentado.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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