sábado, abril 20, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)


O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, bom e autêntico pastor das ovelhas. Em cada ano, se lê um trecho diferente, mas sempre do mesmo capítulo, apresentando sempre a imagem do pastor a Jesus. Por isso, esse domingo ficou tradicionalmente conhecido como o «domingo do Bom Pastor». Por causa disso, de modo muito oportuno, o então Papa Paulo VI o instituiu também como o «dia mundial de oração pelas vocações». Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, o texto específico é Jo 10,11-18. Por sinal, de todo o capítulo, esses são os versículos que mais insistem na apresentação de Jesus como pastor. O cenário da narrativa é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo, durante uma das festas judaicas de peregrinação, embora não fique claro qual delas, se a festa das tendas ou a da dedicação do templo (cf. Jo 7,1-10; 10,22). É importante perceber que o evangelista João faz as principais manifestações de Jesus coincidirem com as festas de Israel para enfatizar sua condição de oposição e alternativa à estrutura religiosa do seu tempo.

Faremos hoje a contextualização em dois níveis: num nível mais amplo, considerando a imagem do pastor no cristianismo e em Israel e, em seguida, num nível mais literário, considerando a posição do texto no conjunto do Quarto Evangelho. A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente em nada ao décimo capítulo do Evangelho de João. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada «parábola da ovelha perdida» (Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas. Jesus é um pastor que humaniza e educa para a liberdade.

Também é importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11). Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após esse discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protegê-lo.

A nível de contexto literário, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo polêmico episódio da cura do cego de nascença, do qual surgiu um caloroso conflito entre Jesus e os fariseus (Jo 9,1-41). Para os fariseus e os dirigentes judeus, o gesto libertador de Jesus, ao curar o cego, era uma ameaça aos seus privilégios, por isso, o rechaçaram veemente, mas Jesus não se deu por vencido e, por isso, continuou sua investida para desmascará-los. É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e para que adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor, entrando e saindo pela única porta que conduz à vida em plenitude. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir da imposição e do medo. O cenário do episódio é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo. Olhemos, pois, para o texto.

Feita a contextualização, olhemos para o texto, cuja profundidade é evidenciada já a partir do primeiro versículo: «Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas» (v. 11). Com a expressão “Eu sou” (em grego: Ἐγώ εἰμι – egô eimí) Jesus recorda a sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus, como tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João tem um grande zelo por essa expressão, e só permite que ela seja pronunciada por Jesus, em sua obra. Assim, ele afirma que Jesus possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo, ao revelar-se como pastor autêntico. Por sinal, a expressão «bom pastor» não expressa tudo o que o texto diz na língua original. O evangelista emprega um termo que significa mais do que bondade, para expressar a qualidade de pastor que é Jesus. O termo empregado significa belo (em grego: καλός – kalós), não em relação às aparências, mas no sentido de completude, autenticidade, perfeição, realidade única; é o mesmo adjetivo empregado para qualificar o vinho novo das bodas de Caná (cf. Jo 2,10), que representa a superioridade da nova aliança em relação à antiga. Possui, portanto, uma função substitutiva. Isso quer dizer que só Jesus é pastor autêntico. Não existem outros pastores além dele; se existiram antes, perderam a validade depois dele. E a história mostra que os que vieram antes dele eram mais mercenários do que pastores.

E o que explica a qualidade única do pastoreio de Jesus é a capacidade de dar a vida pelas ovelhas, o que pressupõe um amor ilimitado. De fato, a primeira atitude que justifica a bondade ou beleza de Jesus enquanto pastor é a doação da vida. Ele é pastor belo/bom porque dá a vida, antes de tudo. E a palavra-chave de todo o texto é exatamente o verbo dar (em grego: τίθημι), repetido cinco vezes nesta passagem (vv. 11.15.17.18). Esse verbo pode ser traduzido também como doar, oferecer, entregar. No versículo 18, esse verbo aparece duas vezes, sendo que numa delas está traduzido por entregar. É importante recordar que, ao apresentar-se como aquele que dá a vida, Jesus não se refere apenas a sua morte de cruz. Na verdade, a morte na cruz foi o resultado ou consequência do seu doar vida continuamente. Durante toda a sua vida, ele deu vida às pessoas com quem se encontrou, principalmente as mais necessitadas. A sua vida foi uma doação contínua de vida. Ele doou vida aos pecadores e pecadoras a quem acolheu, aos doentes a quem curou, aos possuídos a quem libertou. Reduzir sua doação de vida à sua morte na cruz seria negligenciar sua missão de enviado do Pai para fazer plenamente sua vontade e revelar seu rosto com transparência. E o Pai o enviou para dar vida ao mundo. A morte na cruz, portanto, foi consequência de sua fidelidade, do seu dar-se plenamente, por amor. De fato, só o amor motiva alguém a fazer a da vida um dar-se contínuo, como ele fez. E a vida de quem dá vida não se acaba, se torna sempre mais viva, nem a morte consegue destruí-la, é vida que se eterniza. Por isso, dar a vida deve ser um imperativo também quem acredita em Jesus e recebeu vida em seu nome, quem vivificou-se pelo seu amor, pelas suas palavras.

Após apresentar-se como pastor bom/belo, capaz de dar vida, Jesus mostra o seu oposto, o que não deve ser seguido nem imitado entre os seus seguidores: «O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa» (v. 12). O termo mercenário, que se tornou tão pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado; aqui, representa a hierarquia religiosa de Jerusalém. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, «pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as ovelhas» (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo não importava a situação do povo, pois eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam. Viviam uma relação meramente mercantilista, sem nenhuma sensibilidade para o cuidado do povo, pois não eram movidos pelo amor. Por isso, deixavam as ovelhas à mercê dos lobos. O lobo é imagem das forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Nesse contexto específico, representa o império romano. Ao invés de combatê-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante recordar que as denúncias de Jesus às estruturas da sua época são válidas para todos os tempos.

Na sequência, Jesus explica como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: ele conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (Os 2,22; 4,1; 6,3.6; Na 1,8; Jr 31,34), por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante a de Jesus com o próprio Pai«Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas» (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com as suas ovelhas é atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida. Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, mediante o amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir» (v. 16a). Aqui está a abertura de horizonte. Pelas circunstâncias, o pastoreio de Jesus começa por Israel – o redil ao qual o texto se refere –, libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a todo o universo, ao longo da história.

A abertura universalista recorda que nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também as pessoas que não fazem parte do redil pertencem a Deus e são amadas por ele. E, como diz Jesus, também «elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor» (v. 16b). Temos aqui o “sonho da unidade” sendo plantado por Jesus. A expressão «um só rebanho e um só pastor» não significa simplesmente a adesão de todo o mundo a um único sistema religioso, submetendo-se a uma única liderança. Significa, acima de tudo, um projeto de fraternidade universal, com inclusão, tolerância, justiça e solidariedade; é um mundo novo, construído a partir do amor. Par isso, é necessário que a voz inconfundível de Jesus ressoe em todo o universo e seja ouvida, mas expressa pela linguagem do amor, jamais através de proselitismos e imposição. De fato, a voz de Jesus não é um som, não é um eco, mas é o seu estilo de vida, seu jeito de amar, enfim, é a sua própria pessoa. Espalha essa voz no mundo, portanto, quem vive e ama à sua maneira, e não quem faz proselitismos em templos, praças e esquinas, repetindo fórmulas e mensagens ameaçadoras. A voz de Jesus só pode ser ouvida se pronunciada com amor. Por isso, não é tão difícil, nos dias atuais, identificar onde essa voz deixa de ser pronunciada.

Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: «É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente» (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la, torná-la eterna. E a vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: «Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo» (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência e consciência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor incondicional não mede consequências. A expressão «tenho o poder de entregá-la e de recebê-la novamente» (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: «essa é a ordem que recebi do meu Pai» (v. 18c). Como se vê, Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida. É isso o que ele pede aos seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja, de fato, a primeira instância do sonho de «um só rebanho e um só pastor», como embrião de um mundo novo.

Que o Pastor Bom, autêntico e único, inspire vocações que façam ressoar a sua voz no mundo, suscitando colaboradores e colaboradoras para o seu pastoreio. Em tempos tão difíceis, é essencial que sua voz seja ouvida, sobretudo no combate aos mercenários e lobos que se tornam cada vez mais agressivos e numerosos. E para colaborar com o pastoreio de Jesus é necessário deixar-se conhecer por ele, deixar-se amar e segui-lo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró- RN

sábado, abril 13, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)


O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de João, que será retomada no próximo domingo. O trecho lido hoje é precisamente Lc 24,35-48. Trata-se da sequência imediata do conhecido episódio dos “Discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35). Esse dado já é suficiente para nos situar no contexto do evangelho. Ora, cronologicamente, esse texto situa-se ainda naquele “primeiro dia da semana”, ou seja, o dia mesmo da ressurreição. Conforme o relato evangélico, aquele fora um dia tenso para a comunidade, marcada por dúvidas, medos e desilusões, mas também por novas descobertas, com alegria, esperança e renovação da fé. Para perceber isso, basta olhar o texto em seu conjunto, compreendendo o inteiro capítulo 24. Ora, a série de acontecimentos dos quais o evangelho de hoje faz parte começa ainda com a visita das mulheres ao túmulo, logo de madrugada (Lc 24,1), depois a ida também de Pedro ao túmulo, passando pela caminhada triste e desiludida dos dois discípulos para Emaús, até a manifestação de Jesus Ressuscitado à comunidade reunida em Jerusalém, já à noite. Essa visão de conjunto é essencial para compreender o texto lido neste dia. São muitos acontecimentos para um único dia, dos quais o evangelho de hoje é ápice.

Antes de comentar diretamente o texto, convém recordar que a preocupação do evangelista – falamos de Lucas, mas vale para todos – não é propriamente descrever eventos, mas, através da sua narrativa, responder às perguntas das comunidades destinatárias primeiras. E a principal pergunta respondida pelo trecho lido hoje pode ser reconstruída da seguinte maneira: «tendo Jesus de Nazaré ressuscitado mesmo, onde e como encontrar-se com ele?»  Ora, a síntese e essência da pregação cristã primitiva consistia no anúncio de Jesus de Nazaré como aquele que passou a vida fazendo o bem, morreu na cruz e ressuscitou ao terceiro dia (At 10,36-40). Obviamente, muita gente questionava esse anúncio, pedindo evidências e provas para dar credibilidade e, assim, aderir com mais convicção. Muitos queriam conhecê-lo e encontrar-se com ele, e o relato evangélico de oferece as pistas. À medida em que se passavam os anos após a ressurreição, esses questionamentos aumentavam, principalmente depois que morreu a primeira geração de discípulos e discípulas. Por isso, os evangelhos que apresentam os relatos de manifestações do Ressuscitado de maneira mais elaborada são os dois escritos por último, Lucas e João, respectivamente. E as respostas dadas aos questionamentos de outrora são válidas para todos os tempos. Lucas, de um modo particular, é quem responde com mais precisão: o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação, em qualquer espaço e em qualquer época: ele está na estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (Lc 24,13-35), está na mesa durante as refeições, quando o alimento é partilhado, está no meio da comunidade reunida e nas pessoas necessitadas, principalmente as famintas e feridas, com chagas expostas para serem cuidadas. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos, a mente e o coração.

Feitas as devidas considerações contextuais, olhemos então para o texto, partindo do início: «os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão» (v. 35). Os dois discípulos referidos pelo evangelista, obviamente, são aqueles dois de Emaús que retornaram a Jerusalém assim que reconheceram o Ressuscitado na partilha do pão, após uma longa caminhada marcada pela tristeza e desilusão. Após o reconheceram, se levantaram e voltaram imediatamente para Jerusalém e contaram tudo o que tinham acabado de experimentar aos Onze e aos que estavam com eles (Lc 24,33), que certamente eram em grande número, uma vez que em Lucas o discipulado de Jesus é mais amplo do que nos outros evangelhos, inclusive com mais participação das mulheres. O fato de estarem reunidos demonstra esperança na comunidade, apesar das tantas desilusões experimentadas até aquele momento. Ao recordar que o Ressuscitado foi reconhecido ao partir o pão, o evangelista ensina que ele está no cotidiano das pessoas, é alguém de casa, faz parte da família, é uma pessoa acessível. Assim, ele prepara as gerações futuras de discípulos e discípulas: as visões se perdem com o tempo; os cristãos futuros não devem esperar manifestações extraordinárias; se quiserem reconhecer o Ressuscitado, devem partilhar o pão em comunidade, não como mera perpetuação de um rito, mas como doação de si e do que se tem. Só é possível encontro autêntico com o Ressuscitado onde há partilha e solidariedade.

Eis que os dois que tinham retornado de Emaús «ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!”» (v. 36). Quer dizer, foram interrompidos pelo próprio Jesus, em sinal de aprovação. Ora, falar de Jesus já é um modo de torná-lo presente na comunidade; partilhar a experiência feita com ele, portanto, é atualizar e expandir a sua presença. Ele se manifestou aos demais quando os dois contavam o que tinham vivido com ele. Logo, a comunidade reunida, mesmo insegura, se torna o lugar privilegiado de encontro com o Ressuscitado, sobretudo quando é dele que se fala. Ao se falar dele e da experiência feita com ele, recorda-se também a sua mensagem, o seu estilo de vida, e é disso que a comunidade mais necessita. E no interior da comunidade, o lugar dele é o centro, por isso, ele apareceu “no meio” deles. Com essa informação, o evangelista está fazendo uma advertência: a comunidade cristã não pode ter outro ponto de referência senão o Ressuscitado; só ele pode ser o centro. É claro que a presença dele compreende todo o seu ser e o seu projeto de libertação; tê-lo no centro, portanto, significa aderir a esse projeto e empenhar-se pela sua plena realização, o que corresponde à construção do Reino de Deus.

Tendo o Ressuscitado presente em seu meio, a comunidade passa a gozar dos seus dons, do quais o primeiro é a paz. O Ressuscitado diz «paz esteja convosco», e não se trata de uma simples saudação ou um tranquilizante, mas de uma força reconciliadora e revigorante. A tradicional saudação hebraica “shalom”, cujo significado é paz, aponta para um bem almejado, mas ainda não realizado, enquanto a saudação do Ressuscitado comporta um dom já realizado. A paz era almejada como um bem messiânico futuro, pelos judeus. Para tanto, esperava-se um messias glorioso, cheio de poderes militares, que vencesse os inimigos, dando tranquilidade ao povo, o que seria apenas o outro lado da moeda da “pax romana”. De fato, a paz veio por meio do Messias, mas um messias sofredor, crucificado. Por isso, também a paz que ele oferta é diferente. Trata-se de uma paz inquieta, que não tranquiliza, mas vence o medo e fortalece a busca pela realização plena do Reino de Deus. Por isso, era tão necessária, pois apesar das evidências da presença do Ressuscitado, o medo continuava entre os discípulos, e isso os impedia de reconhecê-lo, como denuncia o evangelista: «Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma» v. 37). O medo, além de acuar a comunidade em seus fechamentos, faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. De fantasma a juiz vingativo, o Ressuscitado pode ser confundido quando a comunidade não absorve a sua paz e nem compreende as Escrituras. Na verdade, o evangelista não emprega a palavra fantasma propriamente, e sim o termo espírito (em grego: πνεῦμα – pneuma).

É claro que Jesus compreendia as razões do medo, das dúvidas e preocupações da comunidade reunida. Mas, para fazê-la superar, ele a questiona: «Por que estais preocupados, e por que tendes dúvidas no coração?» (v. 38). Com isso, o evangelista ensina que só reconhece o Cristo Ressuscitado quem aceitar Jesus de Nazaré, aquele que morreu na cruz. Daí, a demonstração: «Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede!» (v. 39a). Ora, se o anúncio da ressurreição encontrava dificuldade de aceitação, muito mais tratando-se de um crucificado. Ora, havia uma crença entre os judeus que, em caso de morte natural, até o terceiro dia, o espírito do morto rondava pelos arredores do túmulo, o que alimentava certa esperança de que a pessoa poderia voltar a viver. Mas isso não era crença na ressurreição, e sim uma intuição que a pessoa poderia não ter morrido totalmente. Mas no caso de morte na cruz, essa possibilidade era totalmente descartada. Por isso, o evangelista insiste em recordar as marcas da paixão – os sinais da cruz – para acentuar a certeza de que Jesus ressuscitou mesmo, ou seja, sua ressurreição não poderia ser invenção. O Ressuscitado é uma pessoa real com quem a comunidade deve relacionar-se, e a constatação da sua corporeidade reforça isso. Além das marcas da paixão, mãos e pés são sinais também da sua identidade e da sua missão: mãos que serviram, que curaram feridas, pés que percorreram tantos caminhos levando amor, justiça e perdão. Para a obra de Lucas, particularmente, os pés possuem um significado muito especial. Ora, Lucas é o evangelista do caminho e sua obra toda aponta para a missão – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Na cena paralela a essa no Evangelho de João, Jesus mostra as mãos e o lado (20,20.27). Em Lucas substitui-se o lado pelos pés porque os pés são altamente significativos para a sua teologia da missão.

O convite que Jesus faz para os discípulos tocar-lhe é totalmente comprometedor. Não foi feito apenas a testemunhas privilegiadas do passado; é feito aos cristãos e cristãs de todos os tempos: não existe fé verdadeira no Ressuscitado sem experiência, sem relação, sem toque. Hoje, tocamos o Ressuscitado quando tocamos nas feridas dos pobres, dos doentes, das pessoas necessitadas em geral. O seguimento de Jesus exige que se toque em feridas, em todos os tempos. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado. Isso faz da ressurreição uma realidade contínua, ao invés de um simples evento do passado, pois o Ressuscitado é um ser eternamente vivente. É uma pessoa viva, não um fantasma ou um espírito, como ele mesmo diz, continuando sua demonstração de estar vivo no meio da comunidade: «Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho» (v. 39b). No texto original, aparece literalmente a expressão “carne e osso”, com as palavras assim juntas (em grego: σάρκα καὶ ὀστέα – sárka kaí ostéa). É uma expressão única em toda a Bíblia, para descrever a concretude de uma pessoa viva; possui valor enfático, suficiente para refutar qualquer tendência de negação da corporeidade da ressurreição de Jesus. É a oposição total a um fantasma, embora o texto grego não apresente a palavra fantasma propriamente, e sim o termo espírito, como recordamos anteriormente (v. 37).

Na sequência, o evangelista alerta que, assim como o medo, também a euforia pode paralisar e bloquear a comunidade, impedindo-a de fazer o autêntico encontro com o Ressuscitado: «Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos» (v. 41a). Ora, a alegria é uma das características da pessoa que tem fé, especialmente no evangelho de Lucas. Por isso, deve ser um traço distintivo da própria comunidade cristã. O anúncio do anjo a Maria, por exemplo, foi introduzido pelo convite à alegria (Lc 1,28), bem como a notícia dada aos pobres pastores sobre o nascimento de Jesus foi anunciada como uma “grande alegria” (Lc 2,10). Porém, a euforia desmedida pode ser prejudicial, porque pode tornar invisíveis os problemas, as dores e as feridas presentes no dia-a-dia da comunidade. É preciso, portanto, buscar um equilíbrio de modo que o Ressuscitado não passe despercebido com sua identidade, ou seja, com suas feridas de crucificado. Logo, as reações muito eufóricas, entusiastas e intimistas devem ser vistas com precaução, pois podem dificultar o reconhecimento das reais necessidades da comunidade. Diante disso, o próprio Ressuscitado dá mais um passo para ser encontrado e reconhecido como vivente: «Então Jesus disse: “Tendes alguma coisa para comer?”» (v. 41b). Além de evidenciar ainda mais a sua identidade de pessoa viva, comendo ele reforça a comunhão com os discípulos. A refeição compartilhada é o sinal mais concreto de comunhão. Por isso, essa pergunta-pedido enfatiza também a abertura à convivialidade de Jesus ressuscitado com a comunidade dos seus seguidores e seguidoras. Ele quer estreitar cada vez mais os laços de comunhão.

Em resposta ao pedido de Jesus, os discípulos «deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles» (vv. 42-43). Além de ajudar a superar as dúvidas nos discípulos, a comida partilhada é sinal de fraternidade e comunhão. Ora, comer, é, indiscutivelmente, uma das demonstrações mais consistentes de alguém estar vivo. Se a comunidade reunida tinha alimento disponível naquele momento, quer dizer que ela já tinha compreendido que a partilha, a comunhão e comensalidade eram elementos vitais da sua existência. E o Ressuscitado come o que lhe dão, e se solidariza com todos os famintos e necessitados de pão, em todos os momentos da história; esse é mais um dos significados oferecidos pelo evangelista, além da intenção de evidenciar que o Ressuscitado é uma pessoa viva e concreta. Com isso, ele ajuda os discípulos a superar as dúvidas sobre a ressurreição, e ainda gera a solidariedade da comunidade para com as pessoas necessitadas. É interessante recordar que foi o Ressuscitado mesmo quem pediu algo para comer (v. 41); daí, os discípulos e discípulas em todos os tempos devem concluir que nas pessoas famintas e necessitadas está presente o Ressuscitado. Muito se tem discutido entre os exegetas a respeito do sentido do peixe neste episódio. Como era um alimento comum na época, provavelmente o evangelista o recordou para diferenciar do pão. Quando se fala de pão, geralmente tende-se a espiritualizá-lo. O peixe, embora posteriormente tenha se tornado também um símbolo eucarístico, não dá tanta margem para um discurso espiritualista, aponta sempre para um alimento concreto, recordando a necessidade da partilha concreta na vida da comunidade.

No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Por isso, são os componentes básicos da celebração eucarística que, no entanto, deve ultrapassar os limites do rito e tornar-se vida, prática constante na comunidade. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu à partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas ensina à comunidade quais são os seus elementos essenciais: a partilha do pão e da Palavra. Por isso, tendo já comido, Jesus começou o ensinamento: «São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (v. 44). A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Escritura, ou seja, da Bíblia inteira. E interpretação autêntica se dá num contexto de partilha, como ao redor da mesa de refeição.

A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: «Lei, Profetas e Salmos» (v. 44); tudo isso aponta para Jesus e deve ser lido à luz da sua vida, morte e ressurreição. Inclusive, nessa citação única no Novo Testamento, Lucas rompe o tradicional binômio “Lei e Profetas”, como compêndio do Antigo Testamento, e inclui também os Salmos, como síntese de todos os demais escritos que não fazem parte do Pentateuco nem dos livros proféticos. É uma das grandes novidades deste episódio que, certamente, reflete a consolidação do uso litúrgico do Antigo Testamento nas comunidades lucanas do final do primeiro século. Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história. Dos Discípulos de Emaús o evangelista diz que se abriram os olhos (24,31); dos Onze e demais reunidos com eles, diz que «Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras» (v. 45). Essa é também uma exigência para as comunidades de todos os tempos: as Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, fazem parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã. Por outro lado, sem abertura de mente, pode tornar-se também instrumento de morte.

Um dos temas mais caros a Lucas, a universalidade da salvação, é evidenciado pelo próprio Ressuscitado: «no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém» (v. 46). Não apenas Israel, mas todos os povos são destinatários da paz e do amor do Ressuscitado. A reconciliação da humanidade com Deus é acessível a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos; ninguém pode ser excluído dessa oferta de amor. Essa dinâmica começa por Jerusalém, a sede do poder religioso e, por isso, a primeira necessitada de conversão; a cidade que mata profetas (Lc 13,34). No Antigo Testamento, a universalidade da salvação previa um movimento contrário: eram as nações quem seriam atraídas a Jerusalém (Is 60; Zc 8,22); Jesus inverte essa ordem. Surge, portanto, um novo tempo, uma nova etapa na história que começa por Jerusalém, mas não por privilégio, e sim por necessidade. Quanta reviravolta na história: a terra dos considerados justos é a mais necessitada de perdão! Foi Jerusalém com suas forças de poder que matou Jesus; o mal estava radicado lá e amparado pela religião e o império. São as pessoas religiosas as primeiras necessitadas de conversão.

Dos discípulos e da comunidade cristã de todos os tempos, Jesus pede apenas uma coisa: «Vós sereis testemunhas de tudo isso» (v. 48). Em Lucas, Jesus não confere uma doutrina nem uma regra; não envia os discípulos como pregadores e batizadores, como em Mateus, mas como testemunhas, o que é muito mais comprometedor e exigente. Ser testemunha implica a coragem de dar a vida. Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados pelo evangelista Lucas a fazer um esforço constante para reconhecer o Ressuscitado em nosso meio, com disponibilidade para a partilha, e mente aberta para o conhecimento das Escrituras. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sexta-feira, abril 05, 2024

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,19-31



Como acontece no primeiro Domingo de Páscoa, também no segundo domingo o evangelho é o mesmo para todos os anos. No caso do segundo, o trecho lido é Jo 20,19-31. Este texto narra a continuação dos eventos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou, de imediato, a ausência do corpo como sinal da ressurreição: o Discípulo Amado (Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto que fora lido no domingo.

Da madrugada do primeiro dia, a liturgia de hoje passa para o anoitecer do mesmo dia, como diz o texto: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma normal dispersão. Certamente, o anúncio de Maria Madalena – «Eu vi o Senhor!» (Jo 20,18) – influenciou nesse processo de recomposição, junto à fé do Discípulo Amado, ao constatar o sepulcro vazio em companhia de Pedro, ainda na madrugada daquele dia. Embora se recompondo, a comunidade continuava em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das lideranças religiosas que condenaram Jesus em conluio com o império. É típico de João usar o termo “judeus” em referência aos líderes, e não a todo o povo. Do início ao fim do Quarto Evangelho, eles são apresentados como verdadeiros antagonistas de Jesus, buscando impedir sua a realização da sua missão libertadora a qualquer custo. Porém, não conseguiram, mesmo tendo contribuído para sua morte na cruz. Por isso, o medo deles da parte dos discípulos é até compreensível, apesar de inaceitável. De fato, o medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles um processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz, que, nesse texto, não significa apenas a típica saudação dos judeus (shalom), mas o cumprimento de uma promessa que, por sinal, responde às necessidades reais da comunidade acuada pelo medo. Ora, durante a ceia, vendo seus discípulos angustiados (Jo 14,1), Jesus encorajou-os e prometeu-lhes a paz: «Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz» (Jo 14,27a). Naquele contexto, no entanto, os discípulos não assimilaram esse dom, devido à angústia pela qual passavam. Na verdade, todo este relato do evangelho de hoje deve ser lido na perspectiva da dinâmica promessa–cumprimento: a própria manifestação (aparição) do Ressuscitado à comunidade é também cumprimento de uma promessa: «Vou e volto a vós» (Jo 14,28), como é a doação do Espírito Santo. O Ressuscitado não retorna ao mundo para fazer um julgamento ou prestação de contas, mas para continuar a sua obra de amor, cumprindo suas promessas e continuando a mostrar com gestos e palavras que o Pai lhe enviou ao mundo para, acima de tudo, amar sem medidas. O encontro com a paz de Jesus levanta o ânimo da comunidade que parecia fracassada. Ele comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado: trata-se da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é interpretado apenas como uma demonstração material da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado. No entanto, aqui, as mãos e o lado não são apenas as marcas da paixão; são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que ele demonstrou em toda a sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Estes sinais revelam elementos essenciais da identidade e missão da comunidade: amar e servir, servir e amar, não importa a ordem das palavras. O importante é que serviço e amor não podem faltar numa comunidade cristã. E a certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria. De fato, os discípulos se alegram por verem o Senhor. Essa alegria é carregada de alívio e esperança, tornando-se também um sinal de encorajamento no processo de superação do medo.

Já estabelecido como centro da comunidade, «novamente Jesus disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 21a). A paz é novamente oferecida, porque a passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia nos discípulos; por isso a paz é doada novamente para enfatizar a serenidade e o equilíbrio que devem existir na comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Jesus simplesmente os envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, João pensa na comunidade, em primeiro lugar. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência de Jesus: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ora, ele tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos durante a ceia (Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, o Espírito é comunicado e a promessa é cumprida. O evangelista usa o mesmo verbo/gesto do relato da primeira criação do ser humano (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual entre as pessoas. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Literalmente, quer dizer soprar para dentro do outro, como fez Deus na criação, soprando dentro das narinas da escultura de barro e, assim, transformando-a em ser vivo. Desse modo, podemos dizer que Jesus, ao soprar sobre os seus discípulos, transmitiu-lhes vida, recriando a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. E é o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. E isso se faz através do amor e o serviço. Ao contrário da perspectiva de Lucas, que aguarda para o dia de Pentecostes (cinquenta dias após a páscoa), em João o Espírito Santo é doado no dia mesmo da ressurreição, o que parece mais lógico, tendo em vista a situação da comunidade paralisada pelo medo. A força do Espírito Santo era uma necessidade urgente para reanimar a comunidade.

O dom do Espírito Santo fortalece a comunidade e lhe confere uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, essa passagem foi usada apenas para fundamentar o sacramento da penitência. Mas Jesus não está dando um poder aos discípulos, e sim confiando-lhes uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos. Não se trata, portanto, de um poder para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus e, assim, humanizado.  Os discípulos têm a missão de ser comunicadores desse Espírito em todas as realidades. Ora, Jesus fora definido pelo Batista como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29); para isso fora enviado pelo Pai. E é à maneira do Pai que ele envia seus discípulos em todos os tempos: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21). Portanto, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando no mundo, e isso se dá pelo testemunho dos seus discípulos e pela força do Espírito Santo. Ficam pecados sem perdão, portanto, quando há omissão dos discípulos, quando eles deixam de amar e servir à maneira de Jesus.

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também «Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio» (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que ele foi bastante rotulado negativamente ao longo da história. Ora, o motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos com portas fechadas era o medo. Provavelmente, Tomé não estava trancado com eles porque não tinha medo. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no relato da reanimação de Lázaro. Jesus estava ameaçado de morte, e quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, a cidade de Lázaro, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: «Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: ‘Vamos também nós, para morrermos com ele!’» (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo de incrédulo. Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os demais deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: «Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’» (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi o grande erro de Tomé, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo Amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor entre eles.

E mesmo sem acreditar ainda na ressurreição pelo primeiro anúncio dos companheiros, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, «Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 26). Embora a reunião ainda aconteça às portas fechadas, o medo não é mais mencionado; certamente, fora superado, graças à paz e ao Espírito Santo comunicados pelo Ressuscitado comunicados no primeiro dia. Também é importante indicativo temporal «oito dias depois»; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade de discípulos no domingo, na casa de um dos membros da comunidade. Mas o texto deixa claro que, no final da última década do primeiro século, dada provável da redação deste evangelho, o domingo já estava consolidado como o dia de reunião e encontro da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado, que só sabe servir e amar: «Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’» (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé; provavelmente, não tocou as mãos e o lado, como aparece na maioria das pinturas. Certamente, não precisou disso. É mais provável que tenha se jogado aos pés de Jesus, com essa solene declaração de fé: «Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’» (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. Neste sentido, Tomé é o discípulo modelo.

Ainda sobre Tomé, diz o evangelista que ele era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato. E os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm função paradigmática para a comunidade e os leitores de todos os tempos. Na verdade, o primeiro gêmeo de Tomé é o próprio Jesus, não biologicamente, mas teologicamente. Daí o convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a também tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, sincero, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos(a) videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção e menos fantasia.

A bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem-aventurados os que creram sem terem visto» (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte dos apóstolos e das demais testemunhas de primeira hora. Os novos membros da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. Na verdade, o evangelista usou Tomé como personagem simbólico da transição entre duas fases distintas na vida da comunidade: a geração dos que viram pessoalmente o Senhor, e a dos que aderiram a ele pela fé e o anúncio-testemunho. E não há supremacia de uma sobre a outra. O que importa é crer, o que significa plena adesão ao Evangelho. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como sinais distintivos; a ausência desses sinais significa que o Ressuscitado não é o centro da comunidade.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho de João: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (vv. 30-31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, o Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, que tinha ficado bastante comprometida na comunidade devido à negação e outras incoerências; e para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. 

A comunidade reunida é o lugar privilegiado de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado(a) pelo Espírito que ele transmite. E que o esse mesmo Espírito ajude a reconhecê-lo nos crucificados de sempre, ao longo da história: os pobres, feridos e marginalizados nas mais diversas situações. A fé no Ressuscitado é autêntica, de fato, quando há disponibilidade para de amar e servir, como ele fez. A exigência de Tomé foi, na verdade, uma advertência do evangelista: o seguimento de Jesus exige que se toque em feridas. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 30, 2024

DOMINGO DA PÁSCOA DO SENHOR - JOÃO 20,1-9

 


Ao contrário da Vigília Pascal, cujo evangelho muda a cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, no Domingo da Páscoa a liturgia mantém o mesmo evangelho para todos os anos. Trata-se de 20,1-9. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio», pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é um acontecimento indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das trevas.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando, diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.

Os personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo), o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração.

Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...