O Evangelho deste vigésimo sétimo domingo do
tempo comum (Mateus 21,33-43) apresenta a continuidade do confronto direto e
decisivo de Jesus com as autoridades religiosas de Jerusalém, dentro do próprio
templo. Jesus estava ensinando nas dependências do grande templo e foi
questionado pelos sumos sacerdotes e anciãos do povo: “Com que autoridade
fazes isso? Quem te deu essa autoridade?” (Mt 21,23). Esse questionamento
se deu porque o ensinamento de Jesus ia de encontro ao que a religião da época
ensinava e praticava. Jesus não ensinava doutrinas, mas denunciava a religião
vigente ao apresentar o seu programa, o Reino de Deus.
O ensinamento corajoso e verdadeiro de Jesus se
tornava uma ameaça àquela religião. Como as autoridades religiosas não
aceitavam ser questionadas nem perder seus privilégios, logo elegeram Jesus
como seu inimigo. Ao questionamento das autoridades, Jesus respondeu com três
parábolas, das quais a de hoje é a segunda: a chamada “Parábola dos vinhateiros
homicidas”. A primeira, a dos “Dois filhos chamados a trabalhar na vinha” (Mt
21,28-32), fora lida no domingo passado, e a terceira, a do “Banquete de
casamento” (Mt 22,1-14), será lida no próximo domingo. É importante recordar
que, embora os interlocutores diretos de Jesus nessas parábolas sejam os
sacerdotes e anciãos do povo, ou seja, as autoridades religiosas, o ensinamento
do texto evangélico é destinado aos cristãos e às cristãs da comunidade de
Mateus, inicialmente, e de todos os tempos.
Passada a contextualização, olhemos agora
diretamente para o texto do Evangelho: “Escutai esta outra parábola” (v.
33a). Essa fórmula introdutória deixa claro que essa parábola é a continuidade
de um discurso: se essa é “outra parábola” (em grego: :Allhn parabolh.n – alen parabólen), uma ou mais já fora contada
antes, como já acenamos na contextualização. A sucessão de parábolas em um
mesmo discurso e com um mesmo tema é sinal de importância do que está sendo
ensinado. Recordemos, por exemplo, a série de parábolas do Reino (cf. Mt 13), a
série de parábolas da misericórdia (cf. Lc 15) e, ainda, a série de parábolas
escatológicas (cf. Mt 24 – 25). Portanto, as denúncias de Jesus às autoridades
religiosas de seu tempo foi um elemento de
fundamental importância na sua pregação.
Ainda sobre a introdução da parábola, é
importante recordar o imperativo “escutai” (em grego: avkou,sate – akússate). Esse é mais um indicativo de
importância do que está sendo ensinado. Mais que um exercício da audição,
escutar na Bíblia é um convite à conversão, significa acolher no coração,
aceitar e praticar o ensino proposto. Considerando as peculiaridades de seu
auditório, Jesus o convidava a olhar para a história de Israel e para
Escritura. Isso se evidencia pela apresentação da parábola: “Certo
proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para
esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou-a a
vinhateiros, e viajou para o estrangeiro” (v. 33). Não temos dúvidas de que
Jesus tinha em mente o “Cântico da vinha” do profeta Isaías (cf. Is 5,1-7) ao
propor esta parábola. Como já sabemos, a vinha é a uma imagem privilegiada do
povo de Deus, usada principalmente na tradição profética (cf. Is 5,1-7; 27,2-3;
Jr 2,21; Ez 15,2-8; Os 9,10; etc). Os cuidados do proprietário acenam para uma
grande expectativa dele em relação à produtividade e retorno daquela vinha: ele
mesmo a plantou e a cercou. O lagar para esmagar as uvas significa a expectativa
de bom retorno: uvas boas e em abundância para produzir vinho; a torre de
guarda construída significa o cuidado e o quanto a vinha é preciosa para o seu
dono. A ausência do dono é sinal de muita responsabilidade confiada aos
trabalhadores, os quais devem ter sido escolhidos sob muito cuidado e critério.
É óbvio que quem planta deposita expectativa na
colheita. Assim, aconteceu com o dono da vinha da parábola: “Quando chegou o
tempo da colheita, mandou seus empregados para receber seus frutos” (v.
34). É interessante perceber que, embora ele mesmo tenha plantado, ele não vai
receber os frutos pessoalmente, mas envia seus “servos”; o texto litúrgico usa
o termo empregados, mas o correto é “servos” (em grego: dou,loj –
dúlos). Isso tudo é sinal de confiança desse patrão em seus servos e
empregados. Surpreende a reação dos vinhateiros aos servos enviados pelo dono:
agarraram, espancaram, mataram e apedrejaram. Uma série de ações de violentas é
anunciada como obra dos vinhateiros. Isso tudo é consequência do abuso de poder
da parte dos vinhateiros, os quais se apossaram da vinha indevidamente.
A sequência do texto mostra a paciência e
tolerância do proprietário da vinha: “mandou de novo outros empregados, em
número maior que os primeiros” (v. 36). O dono que ama a sua vinha não
desiste dos frutos. Infelizmente, aconteceu o mesmo com a segunda comitiva de
servos, ou seja, foram tratados com violência como os primeiros. É praticamente
consenso entre os estudiosos que os servos enviados duas vezes à vinha para
receber os frutos são os profetas anteriores e posteriores, conforme a divisão tradicional
da Bíblia Hebraica. Essa interpretação ajuda a identificar os vinhateiros, aqueles
que se apossaram da vinha, fazendo do que é de Deus, propriedade particular: as
autoridades e instituições políticas e religiosas de Israel, ou seja, a
monarquia e o templo. Ao invés de facilitar os devidos frutos ao único dono da
vinha, a religião de Israel tinha se tornado o maior obstáculo para a colheita.
Um simples olhar na história já seria suficiente para essa conclusão: a
rejeição aos profetas, de Samuel a João Batista.
A paciência do dono da vinha é mais uma vez
evidenciada e, como diz o texto: “Finalmente, o proprietário enviou-lhes o
seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’!” (v. 37). Porém, a
reação dos vinhateiros se torna ainda mais violenta com o filho. Tendo já
tomado posse da vinha, não permitindo mais que o dono recebesse seus frutos, os
falsos proprietários viam o filho do dono como ameaça, por isso procuram
eliminá-lo de uma vez: “Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar
posse da sua herança” (v. 38). Ao relatar a violência sofrida pelo filho do
dono da vinha, Jesus chega ao ápice do ensinamento da parábola: os chefes que
lhe interrogam são os vinhateiros que se apossaram da vinha. Eles que
hostilizaram os profetas do Antigo Testamento, rejeitaram a pregação de João
Batista, e agora estão quase matando o filho! Aqui, Jesus faz um novo anúncio
da paixão, dessa vez implícito, uma vez que já havia feito os três anúncios
explícitos (cf. Mt 16,21-18; 17,22-23; 20,17-19). Os três anúncios anteriores
foram feitos aos discípulos, agora é aos próprios algozes que Ele anuncia.
Ao concluir a parábola descrevendo o tratamento
dado ao filho do dono da vinha pelos vinhateiros, “agarraram-no, jogaram-no
para fora da vinha e o mataram” (v. 39), Jesus deixa novamente os sumos
sacerdotes e anciãos do povo em más lençóis: “Quando o dono da vinha voltar,
o que fará com esses vinhateiros?” (v. 40). A resposta deles é uma sentença
de auto-condenação: “Com certeza mandará matar de modo violento esses
perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos
no tempo certo.” (v. 41). Os sumos sacerdotes e anciãos parecem não
perceber que Jesus está falando deles. Continuam ignorando e insistindo em não
acatar o ensinamento de Jesus, exatamente porque tomaram posse indevidamente,
estavam movidos por orgulho, mentira, violência e, por isso, fechados ao que
Jesus ensinava.
Em reação à resposta dos seus interlocutores,
Jesus não fala em momento algum de vingança ou violência da parte do dono da
vinha; apenas evidencia, com base na Escritura, que rejeitar a si é rejeitar ao
próprio Deus, o Pai (v. 42), e que a atitude do dono da vinha será apenas
destituir os vinhateiros de poder: “o Reino de Deus vos será tirado e será
entregue a um povo que produzirá frutos” (v. 43). Os sumos sacerdotes e
anciãos do povo, na verdade todo o sinédrio, já não estão mais autorizados a
falar em nome de Deus, uma vez que, ao tomarem posse da vinha, eles
contrabandearam o rosto e o nome de Deus; ao invés de conceber Deus como um pai
que ama e cuida, eles preferiram um Deus que pune e castiga. Deturbando a
imagem de Deus, eles nem produziram frutos nem permitiram que outros
produzissem. Por isso, Jesus decretou a sua falência.
Ao ler essa parábola e, quase de imediato,
perceber que Jesus aplica o dono da vinha ao seu Pai, os vinhateiros à elite
religiosa de Jerusalém e o filho rejeitado a si mesmo, corremos o risco de
imaginar também uma simples passagem do Reino, saindo das mãos do judaísmo para
a Igreja nascente. É importante perceber que o Reino de Deus não é transferido
de uma religião para outra; é apenas confiado a quem produzir frutos. Os frutos
que caracterizam alguém a participar do Reino são as bem-aventuranças (cf. Mt
5,1-12).
Produz frutos e participa do Reino aquele que
faz a vontade do Pai que está nos céus (cf. Mt 7,21), vivendo segundo as
bem-aventuranças. Toda vez que alguém quer controlar o agir de Deus,
determinando quem está salvo e quem está condenado, está agindo como os
vinhateiros homicidas. O fato de alguém pertencer a uma comunidade/igreja
cristã não garante participação no Reino de Deus. Por isso, mais que uma ameaça
ao judaísmo, essa parábola é uma séria advertência ao cristianismo.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues